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Professor do câmpus vence concurso literário do Neabi

O Prof. Lincoln Amaral, docente do câmpus São João da Boa Vista, venceu o concurso em 1º lugar, na categoria Servidores(as) não negros(as) ou indígenas, com o texto "Homilia".

  • Última atualização em Sexta, 27 de Maio de 2022, 11h34
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O Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas do IFSP (Neabi) divulgou o resultado final da 4ª edição do seu concurso literário na última quarta-feira (25/05).

A ação tem o objetivo de promover e estimular a leitura, a produção e a difusão de textos literários produzidos por alunos e servidores do IFSP autodeclarados negros, indígenas e brancos, a fim de ampliar, de forma afirmativa, a construção de relações democráticas e igualitárias. Busca, assim, dar voz a indivíduos que discutam as lutas e conquistas étnico-raciais. 

Dando continuidade à proposta iniciada em 2016, a realização do 4º Concurso Literário do Neabi abre espaço para que não negros, não negras e não indígenas também se posicionem quanto à temática antirracista. Puderam participar estudantes, docentes, técnicos administrativos e terceirizados do IFSP, autodeclarados negros ou indígenas e também não negros, não negras e não indígenas, desde que apresentassem, em suas produções, uma reflexão sobre o lugar dos negros e indígenas na nossa sociedade. Não puderam participar membros do Neabi nem do Nugs. 

A premiação do concurso foi realizada durante o VI Congresso de Extensão e a VI Mostra de Arte e Cultura (VI Conemac), no dia 25/05/2022.

O Prof. Lincoln Amaral, docente do câmpus São João da Boa Vista, venceu o concurso em 1º lugar, na categoria Servidores/as não negros/as ou indígenas, com o texto "Homilia".

O IFSP - Câmpus São João da Boa Vista parabeniza o Prof. Lincoln Amaral pela iniciativa, participação e premiação no concurso literário, neste tema de tamanha relevância para nossa sociedade.

Confira abaixo, na íntegra, a obra:

HOMILIA

Ele está há mais de dez luas em Rio Branco, perdido, sem dinheiro, desorientado. Deseja partir, mas sua convicção o faz ficar, quer viver a experiência inteira, como fazia nas pescarias de pirarucu, na coleta de mel, nos rituais de sua aldeia. Pretende sugar tudo desta civilização, mesmo que venha a vomitar enjoado.

O ônibus desce a rua em velocidade, ele se assusta, tem vontade de correr para a mata. Mas só há concreto, asfalto, calçadas de pedras multicoloridas. Luzes brilham em toda parte, o barulho não cessa, a noite chega, mas a cidade não descansa.

As pessoas passam apressadas. Formigas obstinadas ao zelo de cumprir, ele não sabe o quê. São nervosas, agitadas, têm as faces retesadas e poucos sorriem. Morrem de infarto, doença inexistente em sua tribo. Mas o rapaz está aqui para viver, para conhecer o sauveiro dos carius, quem sabe, talvez até possa entendê-los.

Pergunta à moça onde fica a rua da missão jesuíta, ela comprime a bolsa ao peito, receosa. Entra numa lanchonete e o dono o enxota. Sente que a violência espreita a todos, parece que aqui não compartilham, como as formigas.

Senta no banco da praça e bebe com os olhos as novidades. Um homem coberto de farrapos alisa a barba e se esforça para explicar o caminho ao rapaz. Como ele fede! Cheira caiçuma amanhecida misturada a podridão corporal.

Apesar do homem mal conseguir manter o equilíbrio e balbuciar palavras desconexas, finalmente aponta a direção que ele deve seguir para chegar à missão. O rapaz oferece ajuda ao ancião, que se retira, antes de proferir palavrões aos berros.

Caminha pelas ruas, quando para em frente à vitrine da loja para observar, perplexo, programas da televisão. Mas logo sai, há olhares hostis que o afugentam.

Já percebi, para eles sou animal exótico, ser repugnante que os incomoda. Por quê? Mal cheguei e já me sinto malvisto, como ameaça, algo que deve ser extirpado do convívio. Será que Lefebvre sentiu o mesmo em nossa aldeia? 

Com receio, vence o trajeto que o leva à missão. Sim, só pode ser aqui. Capela bonita, simples perto das outras construções magníficas. A fachada é pintada de branco, a escadinha desemboca na porta amarela de madeira maciça.

É por isso que aceitei o convite dos missionários para conhecer o mundo dos brancos. Podemos viver em paz, eles têm muito a nos ensinar e também a aprender conosco. Alguém precisa construir essa ponte, é só começar. Posso ser esse alguém.

As janelas que ladeiam a porta da capela são revestidas de pedra sabão. No centro da cumeeira está fixada a cruz branca. No lado esquerdo do telhado, dois sinos imensos pendem do minarete vazado, que os expõem de ambos os lados.

No fundo da capela, a casa geminada parece um barracão, ele lê com dificuldade a escritura da placa de bronze: Missão Jesuítica Inácio de Loyola. Por um instante, pensa em virar-se e voltar pelo mesmo caminho. Mas se contém, apesar da incerteza e da saudade que o castigam, bate na porta com decisão.

Quando o pórtico se abre, vê a figura encantadora. Seus braços estão abertos para acolhê-lo, como a um filho. Seria esse o Mukaya dos brancos? Ele é homem senil, com calva proeminente. Seus cabelos grisalhos cobrem as orelhas. Apesar das rugas, a face é clara e doce, irradia dos olhos o brilho contagiante.

- Seja bem-vindo ao nosso humilde lar, Txoki. Que Deus abençoe a tua chegada. Muito prazer, eu sou o Reverendo Lorenzo.

Por algum tempo tudo é estranhamento para o índio. Aos poucos, ele se acostuma à rígida disciplina da missão. Acorda antes do alvorecer e toma café da manhã com aquelas comidas deliciosas dos brancos. Mais tarde, começam as sessões de iniciação espiritual com o Reverendo Lorenzo. Antes do almoço tem aulas elementares, o irmão Lucas o inicia nas primeiras letras e números.

Mantém o mesmo compasso no período vespertino. Aprendeu a orar com as mãos cruzadas e cotovelos apoiados sobre o banco da capela. Acompanhado do Reverendo, repete mecânicos padre-nossos, ave-marias, credos e salve-rainhas.

A noite se destina ao jantar frugal e à reflexão que não o abandona. Se transforma como Yube, serpente que reina no mundo aquático. Nos devaneios místicos, mescla deuses católicos e tribais, e os tange com a energia da fé.

Sorrateiro, certo dia experimentou o vinho que restou no cálice sagrado. Agora faz questão de guardar objetos usados no culto. Após as missas, leva-os ao pequeno átrio pegado ao altar e os separa com cuidado. Quando fica sozinho, saboreia sobras de vinho da galheta e do cálice. 

Começa a ler textos religiosos, roça o jardim, limpa a casa, alimenta passarinhos que o irmão Lucas cria na área de serviço. Ele gosta mais da coleirinha cinzenta e do anu bicudo. Já os canários da terra, são xodós do irmão Lucas. O índio se aflige com as gaiolas, presos àqueles cubículos, como eles conseguem cantar tão belo assim?

Txoki também se sente encarcerado no seminário. Às vezes tem permissão de sair é dá longos passeios na cidade. Gosta de ir à região portuária do Rio Acre. As pessoas são brancas, negras, indígenas, andinas, há mestiços de todas as raças que convivem naquele local inusitado.

Ele conversa com prostitutas, pescadores, mascates, mendigos e ébrios, esse é o público que às vezes o escuta. Toma conhecimento sobre a formação do Acre, ouve falar de Galvez e Plácido de Castro, daquela história épica. Visita o museu da borracha e descobre que foram os índios que ensinaram os brancos a tirar o leite branco das árvores, a cozê-lo para produzir aquela riqueza que sustentou o país.

Lorenzo é o cariu mais compreensivo que ele conheceu. Txoki passa horas com o religioso e não se cansa. Ele é calmo, ouve e consola inquietações do índio. Também o ensina sobre o mundo dos brancos, seu assunto predileto.

Eles montaram o avião de aeromodelismo que o Reverendo presenteou ao rapaz. Está fascinado pela engenhoca e gosta de ficar no quintal, depois da missa, a manobrar o aparelho. Na área de serviço ao lado, os pássaros aprisionados do irmão Lucas suplicam pela liberdade alada do brinquedo. 

O pároco prega a palavra de Deus, que o índio assimila com enlevo.  Começa a gostar dessa história divina, a absorver o Pai em seu coração. Quem sabe Ele é a ponte, e eu apenas o servo que quer atravessá-la?

Apenas o aturam, com exceção de Lorenzo, o índio é tratado com desprezo, sente falta de sua aldeia... talvez Jesus tenha sido o único cariu que partilhou. As pessoas vêm à igreja e não se modificam, para depois continuar na vilania.

Ao lado da capela, meninos descem a ladeira. No bar da esquina, homens solitários tomam cerveja e dialogam consigo mesmos. O morcego passa como raio, abocanha o fruto da árvore, macera o alimento e faz cocô em pleno voo. Os fieis chegam aos poucos. Vem gente de todo lado, casados e solteiros, crianças e velhos, namorados e sozinhos, na festa da consagração. 

A homilia começou há pouco, Txoki impressiona-se com o sentimento de fé que toma posse de seu coração. Ele, escolhido de seu povo, promessa de liderança religiosa dos Kaxinawá, agora acompanha o transcorrer da missa com emoção.

O Reverendo imprime pompa ao ministério sacramental. Com símbolos rebuscados, o cenário litúrgico é enaltecido com a riqueza gestual. Beijo e reverência no altar, céu como atributo da terra, reino de Deus que se coliga aos homens.

Pai ajude-me, preciso me encontrar. Mas quem sou eu? Tenho sido o não eu, e o não outro. Ninguém desde que cheguei à aldeia dos cariu. Desde que aceitei o convite de Lorenzo, homem afável, que nunca vai me entender de verdade.

Liturgia da palavra. Deus corporificado no clérigo que fala ao rebanho. Alguns homens oram em pé, crianças agitadas, contidas pelas mães, simulam atitudes de louvor. Mulheres se entregam à exaltação, recolhimento interior, súplicas e reflexões. Há pedidos inauditos: cura, emprego, paz, harmonia, amor e felicidade.

Quem será aquele bugre infiel? Eu sei, eles pensam assim. Sou bicho desterrado, sem aldeia, estrangeiro que enfeita a igreja de perplexidade, comiseração e inferioridade. Animal perdido, sem alma, condenado pelos demônios a vagar eternamente sobressaltado.

Txoki sabe, ou talvez apenas imagine que saiba interpretar os fiéis. Aquele guardinha solicita justificativa que preencha sua pacata existência. Pede a Deus humildade, aceitação, para tolerar a tarefa oca de resguardar patrimônio alheio.     

Que curioso, o selvagem convertido, eles pensam, eu sei. Antes de tudo, sou Kaxinawá! Disposto a lutar pelo meu povo no formigueiro branco. Amargurado por ser índio, ser ninguém longe das raízes, como o totalmente outro. O ser que absorve crenças estranhas, que separam os cariu em tribos minuciosamente divididas.

Bons e maus, sóbrios e bêbados, ricos e pobres, brancos e pretos, crentes e hereges, sadios e doentes, devassos e castos, feios e bonitos, letrados e analfabetos, jovens e velhos, mulheres e homens, fortes e fracos, civilizados e selvagens.

Começa a partilha da hóstia, consagração do pão e do vinho. Corpo e sangue, ressurreição, redenção dos pecados. Aquela moça de beleza exuberante, sentada duas fileiras a sua frente, ilumina a mente de júbilo ao sacrossanto. Txoki sabe, ou pensa que sabe... 

Eu acredito Nele. O Pai, homem desprotegido e crucificado. Serei digno de ti, Pai? Representar-te-ei nas aldeias? Conseguirei pacificar índios e carius com a tua graça? Seremos protegidos pelo vosso manto? Que há de se imiscuir à placenta Kaxinawá. Sei que sim, Pai.

Os cabelos despenteados da moça tocam a miniblusa e ressaltam o corpo perfeito. A bela ora com fervor e suplica a chegada da paixão, quer se entregar, sem receios. Consolidar o projeto de amor, destruir o repertório de crenças que criou para si mesma. Ou talvez esteja ali para rezar pela mãe doente.  Txoki sabe?

Antes do seminário, passei fome e frio, penei muito quando cheguei. Queria tabaco, comida e roupa limpa. Tudo é caro, sou pária, índio maltrapilho que levou cusparadas e pontapés. O andarilho que trocou de pele e perdeu seu yuxin, o céu sem estrelas, o legume sem sementes...

Os motivos e intenções dos presentes na missa são diversos. Ela acolhe a enxurrada de anseios e condiciona suas realizações aos desígnios do ritual. Os idólatras, no cerimonial desta tribo, apregoam. Elevam a alma aos céus para tocar o divino, como o Mukaya, ao invocar os deuses da floresta.

Aquela senhora careca com lenço de seda está chorando. Eu poderia dar a infusão a ela? Receber espíritos para curá-la? Atravessar a fronteira dos mundos e remetê-la ao yuxin do olho? Espantar o mal com baforadas de rapé? Tudo depende da fé, cristã ou Kaxinawá, depende de qual convicção humana prevalece.

Qualquer um pode catequizar o índio ignorante como eu. Não me esqueço, sou Kaxinawá! Minha aldeia é nada no Brasil. Eles são invencíveis, milhões de esfomeados. Têm gana de conquista, de destruir barrancos para garimpar, matar os rios, deitar a floresta, nos exterminar. Fazem isso com a benção do Reverendo. Serei representante dessa igreja? Levarei a palavra de Cristo ao alto Purus?

Lorenzo celebra oração, consagra a palavra e consuma o banquete. Os presentes saúdam-se na troca da paz. O Reverendo invoca o Agnus Dei. Clima de comunhão, o coral entoa cânticos emocionantes. Como isso é belo. Como isso me toca...

Deus é Pai dos homens. Ele quer que cada povo sobreviva na sua essência. Precisamos sobreviver a qualquer preço, resistir a nossa falta de viabilidade. Apesar de nossa impotência e selvageria, também somos filhos Dele. Há de nos olhar, como o forte acolhe o fraco, a luz dissipa as trevas, o pai recebe o filho.

 O clérigo professa a terceira oração presidencial. Pede que o mistério seja absorvido no coração de cada irmão. Abençoa a assembleia e se despede: Ide em paz e o Senhor vos acompanhe.

À noite Txoki pega o controle remoto e guia o planar do aviãozinho. Vê lá de cima sua aldeia. A pintura na pele dos homens verdadeiros, as mulheres dos desenhos, os tecidos de algodão que as vestem. A esteira em que o Mukaya está deitado. Txoki está sem pistas de si mesmo.

Num sobressalto, ele sabe o que fazer. Vai à área de serviço e observa a tristeza estampada nos olhos dos pássaros. Abre a portinhola das gaiolas e os liberta. Agora o índio se sente bem, quando seu avião aprende com o voo das aves o melhor caminho para a liberdade.

 

Saiba mais informações sobre o concurso no site da Reitoria do IFSP.

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